Medidas Atípicas: discussões e soluções jurídicas para auxílio na recuperação do crédito inadimplido | por João Salvador Neto

A inadimplência é uma realidade diária que assombra empresários de todos os setores no Brasil. Faz parte da agenda empresarial como uma das maiores preocupações, haja visto o impacto direto sobre o fluxo de caixa e capital de giro, e pelo potencial dano na capacidade dos empresários cumprirem suas próprias obrigações.

Tal cenário ficou ainda mais evidente nos últimos anos, com as consequências econômicas nefastas da pandemia. Índices elevadíssimos de inadimplência foram e estão sendo ainda observados, o que, somados a outros aspectos econômicos, impôs a muitos empresários crise econômica, muitas das vezes, irreversível.

Para buscar garantir a manutenção da saúde financeira dos negócios, a recuperação de crédito é estratégia juridicamente estabelecida e disponível, cujo intuito é ajudar o inadimplente a liquidar as dívidas e regularizar sua situação, concomitantemente satisfazendo o interesse de receber da empresa credora.

E em um país com um sistema judicial tão congestionado quanto o brasileiro, a ferramenta de recuperação de crédito mereceu maior atenção do Poder Legislativo e do Poder Judiciário.

Uma previsão muito relevante está no art. 139, inc. IV do, do CPC[1], no qual estão estabelecidos mecanismos para elevar a efetividade na recuperação, na medida em que o magistrado pode adotar técnicas específicas para assegurar a eficácia da ordem judicial, inclusive em casos de busca de ativos da pessoa inadimplente.

Neste sentido, restou possibilitada na recuperação de crédito a utilização de medidas atípicas, capazes, inclusive, de constranger o devedor que, mesmo na eventualidade de possuir meios para quitação de sua dívida, está se esquivando de realizar o pagamento.

Tais medidas não são taxativas e podem ser determinadas conforme o contexto de cada processo, assim como o contexto da economia e tecnologia a seu tempo.

Nessa ótica, possível a apreensão do passaporte, da CNH e/ou suspenção do direito de dirigir, o bloqueio de cartão de crédito, penhora de pontos de programa de fidelidade de companhias aéreas, penhora de participação societárias (ações e quotas), a proibição de participação em concurso público e a proibição de participação em licitação pública, dentre outros, são várias as possibilidades que o referido artigo 139, inc. IV permitem os credores se valerem para recuperar créditos inadimplidos.

De outra sorte, não se pode olvidar que a utilização dessas ferramentas é mansa e sem questionamento. Seja pelo contraditório e ampla defesa do devedor, seja por movimentos políticos e/ou sociais, os limites da recuperação de crédito sofrem discordância daqueles que o interpretam contrariamente.

Exemplo disso foi a decisão de um desembargador relator de processo distribuído para a 8ª Turma Cível do TJDFT, que ao decidir pedido de urgência (liminar), determinou a penhora de 62.929 pontos que o devedor tinha no programa de fidelidade[2].

Na oportunidade, reformando decisão do magistrado da 11ª Vara Cível de Brasília que havia entendido que milhas áreas são impenhoráveis (o autor da ação reclamava lesão por não conseguir resgatar mais de R$ 42 mil em bitcoins), o desembargador entendeu que a referida pontuação tem valor econômico, tanto que é comercializada em diversos sítios eletrônicos, sendo capaz, então, de suprir o crédito executado.

Fato é que dessa possibilidade de penhora tem-se a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 5.941, no Supremo Tribunal Federal, visando a declaração de inconstitucionalidade do art. 139, inc. IV, do CPC e das interpretações que permitem a restrição de direitos garantidos pela Constituição.

A tese defendida por ocasião da propositura da referida ADI, a qual até a presente data ainda não foi apreciado pela Corte, traz que as medidas coercitivas, indutivas ou sub-rogatórias supostamente afrontariam o princípio da proporcionalidade, já que permitem que as liberdades sejam restringidas em razão de dívida civil.

O julgamento da referida ADI 5941 trará um paradigma revelador dos limites das ferramentas executivas, de expropriação e constrangimento do devedor, sobretudo os meios atípicos, estipulando parâmetros concretos aos magistrados para aplicação de tais medidas.

Discussões sobre a proporcionalidade de restrição de direitos pela aplicação das medidas atípicas também são pauta de julgamentos no Superior Tribunal de Justiça – STJ, o qual vem adotando, pelo menos até o momento, entendimento no sentido deque não há violação automática dos direitos fundamentais pela adoção das medidas atípicas, cabendo ao julgador do caso concreto, contudo, a aferição da viabilidade de sua efetivação, em observância ao contraditório e ao princípio da proporcionalidade.

A Terceira Turma do Superior Tribunal posicionou-se no sentido de utilização das medidas atípicas como meio subsidiário aos instrumentos típicos[3] – como penhora de dinheiro, veículos, imóveis etc, listados no artigo 835 do Código de Processo Civil. 

Ainda,  importante salientar a afetação do Tema de Recursos Repetitivos nº. 1137[4] pelo STJ, o qual versa sobre a possibilidade ou não do magistrado, observando-se a devida fundamentação, o contraditório e a proporcionalidade da medida, adotar, de modo subsidiário, meios executivos atípicos, nos termos do supra referido o artigo 139, inciso IV do CPC.

A decisão de afetação foi proferida pelo Min. Marco Buzzi em 29 de março de 2022, em relação ao REsp nº. 1955539/SP, no qual se busca a suspensão da carteira nacional de habilitação (CNH), bem como do passaporte e cartões de crédito dos executados, diante das tentativas frustradas de satisfação da obrigação.

A justificativa para a afetação foi o potencial de multiplicidade de discussões jurídicas e do conflito de decisões envolvendo o assunto, bem como da existência, à época, de 76 (setenta e seis) acórdãos e 2.168 (dois mil e cento e sessenta e oito) decisões monocráticas proferidas por Ministros componentes das Terceira e Quarta Turmas do STJ, os quais enfrentam a temática.

Desta forma, decidiu-se pela suspensão do processamento de todos os feitos e recursos pendentes que versam sobre idêntica questão e que tramitam no território nacional, nos termos do art. 1.037, inc. II, do CPC.

Em recente julgamento de Habeas Corpus[5], o Superior Tribunal de Justiça trouxe mais um relevante entendimento ao tema. Na oportunidade, a impetrante pretendia reaver seu passaporte apreendido há dois anos como medida coercitiva atípica para obrigá-la a pagar uma dívida de honorários advocatícios de sucumbência. A Terceira Turma do referido Tribunal entendeu, por maioria, que as medidas coercitivas atípicas podem ser impostas pelo tempo suficiente para enfraquecer a resistência do devedor, de modo a convencê-lo de que é mais vantajoso cumprir a obrigação do que se valer do que lhe fora negativamente impacto pela medida restritiva.

De toda sorte, resta claro que a necessidade de os empresários terem suporte jurídico especializado para os auxiliarem na recuperação de crédito, valendo-se de todas e possíveis ferramentas jurídicas disponíveis, legais e acessíveis a seu tempo.

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João Salvador Neto é advogado no Abi-Ackel Advogados Associados, com atuação em Direito Tributário e Contratos. Professor, é mestre em Direito Empresarial e especialista em Direito Tributário.


[1] Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe:

IV – determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária;

[2] Processo nº. 0712398-97.2022.8.07.0000 (TJDFT)

[3] STJ. Recurso Especial nº 1.864.190

[4]https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=1137&cod_tema_final=1137

[5] STJ. Habeas Corpus nº. 711.194.

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