Um panorama geral sobre a modalidade de intervenção do Estado na propriedade alheia e a discussão relativa à realocação de comunidades localizadas em área de risco sob a perspectiva da Jurisprudência
A desapropriação é a modalidade de intervenção do Estado na propriedade alheia que resulta na incorporação compulsória, ao patrimônio público, de um bem de titularidade de um particular, cuja efetivação é baseada em razões de interesse público, mediante observância, em regra, do devido processo legal.
Leciona, sobre o assunto, Celso Antônio Bandeira de Mello[1]:
Desapropriação é o procedimento administrativo através do qual o Poder Público, compulsoriamente, despoja alguém de uma propriedade e a adquire para si, mediante indenização, fundada em um interesse público. À luz do direito brasileiro, desapropriação se define como o procedimento através do qual o Poder Público, compulsoriamente, por ato unilateral, despoja alguém de um bem certo, fundado em necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, adquirindo-o originariamente mediante prévia e justa indenização pagável em dinheiro.
Necessário destacar que o Procedimento expropriatório poderá ocorrer de maneira administrativa, isto é, nas hipóteses em que há consenso entre o Poder Público e o então Proprietário do imóvel, ou, caso contrário, judicial, com fulcro no artigo 5º, Inciso XXIV, da Constituição Federal.
Leciona Caio Mario da Silva Pereira[2], sobre o tema:
Não traduz um confisco do bem particular. Decretada a desapropriação, o expropriante oferece pela coisa desapropriada um preço, que não é coercitivamente instituído, senão considerado como simples oferta. Aceita esta pelo interessado, conclui-se o expropriamento. Recusada, porém, será revisto em Juízo onde se trava então a batalha de sua fixação, como objeto de sentença a ser proferida no processo.
Neste diapasão, importante mencionar que, conforme posicionamento Doutrinário[3], por constituir, a Desapropriação, verdadeira exceção ao Princípio da Função Social da Propriedade, faz-se necessário que o Ente Público, para fins de executar o ato, justifique-o de maneira formal e regular.
Por constituir exceção ao princípio de garantia da propriedade privada, que se justifica em face do conflito de interesses, armado entre o indivíduo e a comunidade, não tem a administração pública o arbítrio de transferir para o seu patrimônio os bens particulares. Somente pode fazê-lo sob a justificativa de uma razão de necessidade, de interesse ou de conveniência pública. O ato expropriatório, formalmente como intrinsecamente, é unilateral no sentido de que o expropriante por via dele declara a transladação do bem particular para o patrimônio coletivo, descabendo ao expropriado discutir suas razões justificativas.
Neste sentido, destaca-se, dentre as formas de consecução do também denominado “Apossamento Administrativo”, aquela efetivada mediante a declaração de utilidade pública, nos termos do artigo 2º, caput, do Decreto Lei nº 3.365/1941, consubstancia-se, em resumo, na conveniência da transferência da propriedade, sem caráter de imprescindibilidade e cujo conceito abrange, também, conforme trecho abaixo transcrito extraído da obra de Carvalho Filho, a necessidade pública, que, por seu turno, transcende a mera conveniência da transferência da propriedade alheia ao Ente Público, refletindo situação de urgência em fazê-lo.
A desapropriação só pode ser considerada legítima se presentes estiverem seus pressupostos. São pressupostos da desapropriação a utilidade pública, nesta se incluindo a necessidade pública, e o interesse social.[4]
Assim, o procedimento da desapropriação se desenvolve em 02 (duas) etapas, sendo a primeira delas, declaratória, quando o Poder Público – Entes Federados, ou, Autarquias, desde que autorizadas por Lei – declara o bem como de utilidade pública, exigindo-se, para tanto, o cumprimento de 04 (quatro) formalidades, a saber (i) a especificação do bem de desapropriação; (ii) a motivação do ato; (iii) a indicação do Dispositivo Legal; e (iv) o valor da indenização. Para tanto, deverá haver a notificação do particular, nos termos do artigo 10-A, do aludido Decreto.
A segunda fase é denominada de executória, ocasião em que, de fato, inicia-se o procedimento de desapropriação. Entretanto, não havendo consenso entre as Partes, inaugura-se, obrigatoriamente, um Procedimento Judicial para equalização do valor devido a título indenizatório, sendo possível, ademais, ao Ente Público, pugnar pela imissão provisória na posse, nos termos do artigo 15, do Decreto Lei 3.365, cujo deferimento ocorrerá apenas nas hipóteses em que declarados, na Petição Inicial, a urgência na obtenção do Provimento Jurisdicional, procedendo-se, ademais, com o depósito judicial da parcela incontroversa, isto é, da quantia que o Poder Público entende justa ao Particular, da indenização.
Desta forma já ratificou o Tribunal de Justiça de Minas Gerais:
AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE SERVIDÃO ADMINISTRATIVA – LIMINAR – IMISSÃO PROVISÓRIA NA POSSE – DEMONSTRAÇÃO DE UTILIDADE PÚBLICA – DECLARAÇÃO DE URGÊNCIA – REALIZAÇÃO DE DEPÓSITO PRÉVIO – DECISÃO MANTIDA.- Em caso de desapropriação ou servidão administrativa, a imissão provisória na posse depende da demonstração da utilidade pública, da declaração de urgência e da realização do deposito prévio em dinheiro. – A consolidada jurisprudência do STJ é no sentido de que a imissão provisória na posse do imóvel objeto de desapropriação ou de servidão administrativa, caracterizada pela urgência, prescinde de citação do réu, de avaliação prévia ou de pagamento integral (REsp 1139701/SP). – Demonstrada a utilidade pública, declarada a urgência da imissão provisória na posse do imóvel objeto da lide e comprovado o depósito prévio do valor constante do laudo de avaliação e vistoria juntado aos autos, deve ser mantida a decisão que deferiu a liminar de imissão de posse do imóvel objeto da servidão administrativa. (TJMG – Agravo de Instrumento-Cv 1.0000.19.150625-2/001, Relator(a): Des.(a) Ana Paula Caixeta , 4ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 02/07/2020, publicação da súmula em 03/07/2020). (Grifou-se).
Nestes casos, posterga-se o contraditório pois, quando há Interesse Público, não é razoável que se aguarde a discussão dos valores indenizatórios, que deve ser contemporâneo à avaliação judicial[5]. Veja-se:
AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE SERVIDÃO ADMINISTRATIVA – IMISSÃO PROVISÓRIA NA POSSE – AVALIAÇÃO JUDICIAL PRÉVIA – PRESCINDIBILIDADE – REQUISITOS DO ART. 15 DO DECRETO LEI nº 3.365/1941 – PRESENÇA – DECISÃO MANTIDA. A imissão na posse para fins de servidão administrativa, a título de utilidade pública, exige a presença dos requisitos elencados no art. 15 do Decreto Lei nº 3.365/1941, quais sejam a urgência e o depósito prévio do valor previsto. Diante da supremacia do interesse público em detrimento do interesse particular, a imissão provisória na posse da concessionária para a implementação de serviço essencial de interesse coletivo não pode aguardar a discussão sobre o valor justo da indenização, até porque a discordância quanto ao valor do depósito prévio não impede sua complementação depois da formação do contraditório ou após o fim da obra. (TJMG – Agravo de Instrumento-Cv 1.0000.20.062168-8/001, Relator(a): Des.(a) Baeta Neves , 18ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 25/08/2020, publicação da súmula em 27/08/2020) (Grifou-se).
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. INDENIZAÇÃO. LAUDO PERICIAL. ART. 26 DO DECRETO-LEI 3.365/1941. CONTEMPORANEIDADE À DATA DA AVALIAÇÃO. JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE DO STJ. SÚMULA 83/STJ. 1. O acórdão recorrido está em sintonia com o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que o valor da indenização será contemporâneo à data da avaliação judicial, não sendo relevante a data em que ocorreu a imissão na posse, tampouco aquela em que se deu a vistoria do expropriante e, no caso em tela, do esbulho. Nesse sentido: AgInt no AREsp 1.322.894/GO, Relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, DJe 21/11/2018. 2. Portanto, não merece prosperar a irresignação. Incide, in casu, o princípio estabelecido na Súmula 83/STJ: “Não se conhece do Recurso Especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida”. Cumpre ressaltar que a referida orientação é aplicável também aos recursos interpostos pela alínea “a” do art. 105, III, da Constituição Federal de 1988. 3. Recurso Especial não conhecido. (REsp 1777813/GO, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 13/08/2019, DJe 05/09/2019) (Grifou-se).
Neste interim, importante salientar que, durante o Procedimento Judicial haverá apenas a possibilidade de arguição de nulidade ocorrida no Procedimento Administrativo da desapropriação, ou seja, a discussão da legalidade do ato, assim como a discussão dos valores devidos à título de indenização em razão da incorporação compulsória ao patrimônio Público de um bem de titularidade de Terceiro. Portanto, não cabível discordância ao ato da desapropriação.
Isto porque, pontua-se, o art. 35, caput, do Decreto-Lei nº 3.365/41, é cristalino no sentido de que os bens expropriados pela Fazenda Pública não poderão ser objeto de reivindicação. Logo, consumada a incorporação ao patrimônio público, com a efetiva imissão da posse do bem, torna-se inviável o seu retorno à esfera dominial do proprietário/particular, restando a ele apenas a possibilidade de postular indenização pelos danos causados pelo Expropriante.
Transcreve-se o disposto no referido Ato Normativo:
Art. 35. Os bens expropriados, uma vez incorporados à Fazenda Pública, não podem ser objeto de reivindicação, ainda que fundada em nulidade do processo de desapropriação. Qualquer ação, julgada procedente, resolver-se-á em perdas e danos.
Destaca-se, também, a possibilidade do Particular intentar Procedimento Judicial em desfavor do Poder Público nas hipóteses em que, apesar de imitido na Posse, já estiver consolidada, irregularmente, a imissão na posse da Coisa. Neste caso, buscar-se-á a indenização decorrente do apossamento administrativo procedido de maneira ilegal.
É o entendimento de Carvalho Filho[6]:
Desapropriação indireta é o fato administrativo pelo qual o Estado se apropria de bem particular, sem observância dos requisitos da declaração e da indenização prévia. Observe-se que, a despeito de qualificada como indireta, essa forma expropriatória é mais direta do que a que decorre da desapropriação regular. Nela na verdade, o Estado age realmente manu militari e, portanto, muito mais diretamente.
Em nosso entender, cuida-se realmente de um instituto odiável e verdadeiramente desrespeitoso para com os proprietários. Além disso, revela-se incompreensível e injustificável ante todo o sistema de prerrogativas conferidas ao Poder Público em geral. Em suma, o Estado não precisaria valer-se dessa modalidade expropriatória se tivesse um mínimo de planejamento em suas ações.
Trata-se portanto, em suma, de modalidade de iniciativa do Particular nas hipóteses em que a desapropriação ocorre no plano fático, sem entretanto, atenção aos requisitos de declaração e indenização prévia, conforme ocorrido na ocupação Dandara[7], conforme explicado por Cláudia de Rezende Machado de Araujo[8] (1996, p. 271) apud Marcel Waline (1969, p. 77):
É possível que o domínio de uma propriedade seja consumado pela Administração sem o processo regular de desapropriação, mas de boa-fé; ele resulta indiretamente de uma operação inadequadamente traçada, sem a intenção de anexar fraudulentamente uma propriedade privada.
Especificamente no que se refere a moradores que estejam situados em áreas de risco e haja política pública que lhes assegure direito à moradia, interessante mencionar que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais consolidou sua Jurisprudência por meio do julgamento de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – IRDR, conforme ementa abaixo trasncrita, no sentido de que a retirada de pessoas que residam em locais com estas características não pode ser considerado como ato expropriatório, isto é, não configuram a Desapropriação, inexistindo, consequentemente, o Direito Indenizatório vinculado ao Poder Público.
IRDR – AMPLIAÇÃO DO OBJETO POSTERIORMENTE À INSTAURAÇÃO – PRINCÍPIO DA NÃO SURPRESA – DESCABIMENTO. – Sem embargo da possibilidade de aplicação da tese firmada em sede de IRDR em situações fático-jurídicas semelhantes, como precedente jurisprudencial, não se mostra possível a ampliação do objeto do incidente após a sua instauração, em obediência à segurança jurídica e ao princípio da não surpresa, positivado em nosso ordenamento processual no artigo 10, do novo CPC.
– A tese jurídica a ser firmada por este eg. Órgão Julgador circunscreve-se a responder ao questionamento com base no qual foi instaurado o presente incidente, sob pena de desvirtuamento de sua precípua função de pacificação de controvérsia de direito, mediante temerária abrangência de múltiplas situações fáticas que transcendem ao objeto de definição.
– Firma-se a tese no sentido de que a remoção de moradores de área de risco, por si só, não caracteriza desapropriação indireta ou apossamento administrativo, eis que não houve a incorporação do bem ao Município, tampouco a prática de ato ilícito, o que afasta o dever de indenizar. (Grifou-se).
INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS (IRDR) – INDENIZAÇÃO DECORRENTE DE REMOÇÃO DE MORADOR DE ÁREA DE RISCO – DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA OU APOSSAMENTO ADMINISTRATIVO NÃO CONFIGURADO – AUSÊNCIA DE CONDUTA ILÍCITA – DEVER DE INDENIZAR AFASTADO – INCLUSÃO DO MORADOR EM PROGRAMA HABITACIONAL.
– O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas nasceu com o objetivo de permitir que se dê tratamento judicial isonômico a uma mesma questão de direito que envolva causas individuais e repetitivas, com o mesmo fundamento jurídico, com vistas a preservar a integridade e a segurança jurídica das decisões, e, ao mesmo tempo, propiciar maior efetividade e celeridade à prestação jurisdicional e estabilidade à jurisprudência.
– Firma-se a tese no sentido de que a remoção de moradores de área de risco, por s i só, não caracteriza desapropriação indireta ou apossamento administrativo, eis que não houve a incorporação do bem ao Município, tampouco a prática de ato ilícito, o que afasta o dever de indenizar, desde que presente política pública concreta apta a assegurar ao morador removido o direito à moradia no Município. (TJMG – IRDR – Cv 1.0079.13.005785-8/002, Relator(a): Des.(a) Luís Carlos Gambogi , 1ª Seção Cível, julgamento em 24/04/2018, publicação da súmula em 25/05/2018). (Grifou-se).
Neste sentido, considerando que a Constituição consagrou o direito à moradia digna, em seu artigo 6º, caput, portanto, atendido os requisitos, a realocação de moradores instalados em área de risco reflete literal legalidade, não havendo, neste sentido, obrigação, nas hipóteses em que há política pública consistente, do pagamento de indenização, vez que afastada a incidência do instituto da Desapropriação.
Por outro lado, não havendo o preenchimento dos requisitos acima indicados, tem-se pela necessidade e obrigação do Poder Público de instaurar o respectivo Procedimento, administrativo, ou, eventualmente judicial – ou, em caso de omissão, do próprio Particular, ou, Comunidade, assim procederem – buscando a justa indenização que, por previsão Constitucional expressa lhes é devida.
Desta forma, conclui-se que a Desapropriação se trata de um instituto de múltiplas aplicações, podendo ter natureza administrativa, ou, judicial, contenciosa, ou, amigável. Além disso, um instrumento relevante de gestão pública, possibilitando ao Poder Público a execução das medidas necessárias, intervindo na propriedade privada, nos termos da Lei, havendo, entretanto, exceções à sua aplicação, nos moldes acima declinados.
Laura Bernis Mohallem
Estagiária Acadêmica
(31) 3261-8083
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[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo. São Paulo. Revista dos Tribunais.
[2] PEREIRA DA SILVA, Caio Mário. Instituições de Direito Civil. Volume IV.Forense. Rio de Janeiro. 2019.
[3] PEREIRA DA SILVA, Caio Mário. Instituições de Direito Civil. Volume IV.Forense. Rio de Janeiro. 2019.
[4] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. Atlas. São Paulo. 2019.
[5] Nessa linha, AgInt nos EDcl no AREsp 920.756/SP, Rel. Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, DJe 26/3/2019 e AgInt no AREsp 1.169.829/SP, Rel. Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe 15/12/2017.
[6] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. Atlas. São Paulo. 2019.
[7] COSTA, Mariana. Acordo 11 anos depois: donos de terreno da Ocupação Dandara receberão R$ 51 mi. Estado de Minas, Belo Horizonte, 16 nov. 2020. Disponível em:.https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/11/16/interna_gerais,1205771/acordo-11-anos-depois-donos-de-terreno-da-ocupacao-dandara-r-51-mi.shtml . Acesso em: 26 nov. 2020.
[8] MACHADO DE ARAÚJO, Cláudia de Rezende. Desapropriação indireta. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 33 n. 131 jul./set. 1996. Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/176461/000512669.pdf?sequence=3&isAllowed=y. Acesso em: 26 nov. 2020.