Uma análise sobre os reflexos da pandemia do Novo Coronavírus no setor aeroviário, com fulcro nas disposições legais e no entendimento jurisprudencial
Um dos nichos de mercado mais afetados pela crise do Novo Coronavírus foi o setor aeroviário, que compreende não apenas as respectivas companhias de aviação, mas, também, uma série de outros serviços, como agências de turismo, empresas de alimentação, catering[1] e comissariado.
Segundo matéria[2] publicada pela revista “Valor Econômico”, ainda no mês de maio de 2020, devido à diminuição das vendas e às novas medidas de segurança – como a desocupação de algumas poltronas em voos – os valores das passagens aéreas poderiam subir mais de 50% (cinquenta por cento), levando algumas das principais Empresas que compõem o setor de transporte aéreo a vivenciar sérias dificuldades financeiras.
Nesse sentido, visando assegurar a estabilidade econômica e atendendo ao requerimento das companhias aéreas, que manifestam preocupação com a crise que a pandemia gera para o setor, o Governo Federal editou a medida provisória nº925/2020, posteriormente convertida na Lei 14.034/20[3], que possibilitou aos consumidores que adquiriram passagens aéreas para o ano de 2020 cancelarem os bilhetes, utilizando os respectivos valores desembolsados em um momento posterior como crédito em outros voos dentro do prazo de 01 (um) ano, sem pagamento de multas.
A referida Lei promoveu 02 (duas) alterações que impactam, de maneira direta, nas discussões jurídico-processuais envolvendo as Empresas atuantes no setor aeroviário, estabelecendo-se, como a seguir será demonstrado, que é do passageiro o dever de provar dano extrapatrimonial decorrente da falha de prestação de serviço, demonstrando o prejuízo e sua extensão.
A finalidade é harmonizar as relações de consumo, visto que, se por um lado, efetivamente, preocupa-se com o atendimento das necessidades básicas dos consumidores (isto é, respeito à sua dignidade, saúde, segurança, e aos seus interesses econômicos), por outro, visa-se, igualmente, garantir as boas relações comerciais e a proteção jurídica das Empresas que compõem toda a cadeia produtiva deste seguimento de mercado.
Entretanto, a relação do consumidor com as companhias aéreas em tempos da pandemia do COVID-19 pode ser desarmônica e, muitas vezes, ocasionar a judicialização de demandas descabidas.
É sabido que, para além da eventual quebra contratual ocasionada pelas Empresas integrantes do Setor Aéreo há, recorrentemente, abuso por parte dos Clientes consumidores que, não se atentando aos prazos de cancelamento, reembolso e possível remarcação da data da passagem aérea, podem infringir a boa-fé contratual, tida como corolário básico das relações privadas e contratuais.
Além disso, o ineditismo do fato ocasionado pelo novo Coronavírus impactou todo a esfera global, podendo encontrar respaldo legal no art. 393, caput, do Código Civil, que, com fulcro em evento imprevisto/de força maior, possibilita a aplicação da Teoria Da Imprevisão (art. 478, caput, do Código Civil).
O princípio da boa-fé, repita-se, é considerado como fundamental e deve nortear tanto as relações de consumo, quanto as relações comuns privadas. Dele decorrem diversos deveres gerais de conduta. No Código de Defesa do Consumidor ele está previsto no art. 4º, mais especificamente no inciso III, e sua aplicação tem função harmonizadora nas relações consumeristas.
Cumpre ressaltar que todas as partes devem se comportar de acordo com este Princípio. Ou seja, é de observância tanto do Consumidor quanto do Fornecedor, justamente porque deve ser mantido o respeito mútuo, fazendo com que o elo contratual seja o mais transparente e seguro possível para ambas as Partes. Assim, em caso de comprovação da má-fé, ou, de inobservância da boa-fé por parte do Consumidor, ocorre a violação positiva do contrato, ou seja, a inobediência dos deveres anexos ora citados.
Nesse sentido, vale inferir que o atraso, ou, o cancelamento de voo não configura dano moral presumido (in re ipsa), e, por isso, a indenização somente será devida se comprovado algum fato extraordinário que tenha trazido abalo psicológico ao consumidor.
Além da quebra do princípio da boa-fé supracitado, a pandemia do novo Coronavírus também se enquadra no conceito de força maior previsto em Lei, como esclarecido acima, hipóteses em que, mesmo havendo o cumprimento diferenciado da obrigação por uma das partes, uma não responde por eventuais inconvenientes causados à outra. Com efeito, a conjuntura pandêmica atual configura “fato necessário, cujo efeito não era possível evitar ou impedir”, previsto no parágrafo único do art. 393, do Código Civil.
Além disso, como dito anteriormente, é cabível a aplicação da Teoria da Imprevisão, que encontra fundamentação legal nos seguintes artigos do Código Civil:
Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Portanto, tem-se que pandemias, guerras e recessões econômicas — e as consequências decorrentes desses eventos — devem ser entendidas como eventos imprevisíveis, que impactam as negociações privadas, elevando os custos envolvidos em todo e qualquer contrato, desequilibrando as prestações obrigacionais inicialmente firmadas entre as Partes, inviabilizando, assim, o seu cumprimento.
Nesse contexto, ao desconsiderar os fatos imprevisíveis no cenário da pandemia, o julgador demonstrará não só uma visão pouco aprofundada do grave e inédito problema enfrentado mundialmente, mas ignorará a aplicação de um preceito previsto em norma primária do Código Civil.
Dessa forma, em razão da atual situação vivenciada ser excepcional e inédita, não cabe aplicar cláusulas contratuais genéricas[4]. Assim, existem precedentes que corroboram com a tese de que há aplicabilidade de força maior e imprevisão dos fatos quando se analisa ações movidas contra companhias aéreas, a exemplo da existência de doença infectocontagiosa no país de destino – como é o caso do novo Coronavírus – e como ocorreu também com a epidemia da Gripe Suína (H1N1), em 2009.
Nesse contexto, posiciona-se a Jurisprudência[5]:
AÇÃO DECLARATORIA – VOO INTERNACIONAL -CANCELAMENTO – CARACTERIZAÇÃO DE FATO IMPREVISÍVEL E INEVITÁVEL – SURTO DE GRIPE H1N1 (GRIPE SUÍNA) NO PAÍS DE DESTINO (ARGENTINA) 1 – Ação ajuizada com a finalidade de restituição dos pontos do “Programa TAM de fidelidade”, porém, pretendendo o autor novo prazo de validade. 2 – Sentença que julgou improcedente a ação sob fundamentação de o fato grave que impede sua viagem na data inicialmente planejado é imprevisível e não imputável à ré. Tal fato externo ao contrato não pode prejudicar o ‘pacta sunt servanda’, já que a empresa aérea não tem qualquer ligação com o surto de saúde verificado na Argentina. 3 -TEORIA DA IMPREVISÃO – Os princípios e direitos conferidos pelo Código de Defesa do Consumidor, vieram para coibir abusos que antes eram arbitrariamente cometidos – Assim verifica-se a atenuação do princípio do pacta sunt servanda, adotando-se a Teoria da Imprevisão (rebus sic stantibus), permitindo-se a revisão e até mesmo a declaração de nulidade de cláusulas que estabeleçam prestações desproporcionais e obrigações excessivamente onerosas (artigo 51, inciso IV do CDC). 4 – Sentença parcialmente reformada para condenar a requerida à restituir os pontos utilizados para aquisição dos bilhetes,descontando-se 10% de taxa administrativa – A validade dos aludidos pontos deverá ser restabelecida de forma idêntica ao prazo,ainda restante, no momento da desistência da viagem, ou seja,tomando-se como base o dia Io de julho de 2009 – A contagem de tal prazo somente reiniciará após o prazo de 30 (trinta) dias necessários para a respectiva anotação dos pontos restituídos (vide: fls. 22), que por sua vez terá como termo “a quo” o trânsito em julgado do presente Acórdão. – Aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. 5 – SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. 6 – RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (TJ-SP – APL: 2439563920108260000 SP 0243956-39.2010.8.26.0000, Relator: Roberto Mac Cracken, Data de Julgamento: 10/02/2011, 37ª Câmara de Direito Privado). (Grifou-se).
Neste diapasão, a Convenção de Montreal[6] para Unificação de Certas Regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional delimitou as excludentes de responsabilidade civil em 02 (duas) circunstâncias, a saber, quando afasta a responsabilidade subjetiva do transportador aéreo, quais sejam, (i) em caso de fato exclusivo da vítima, ou, (ii) fato de terceiro, uma vez que a excludente “força maior” está projetada no entendimento de que não existem medidas a serem adotadas pela Companhia que pudessem impedir e/ou prevenir quaisquer causas e efeitos que resultassem em dano ao passageiro, tornando-se assim questões impossíveis de se prever ou precaver.
Como supracitado, o maior impacto do novo coronavírus em relação aos contratos de transporte aéreos de pessoas foi o aumento do número de alterações e cancelamentos de passagens, o que resultou, por sua vez, na preocupação do legislador, vide a vigente Lei nº14.034/20. Estas medidas se coadunam com a preservação da liquidez das Companhias e, portanto, sua conservação, pois permitem que elas retenham o valor integral das passagens.
Assim, é imperativa a observância dos ditames da Lei nº 14.034/20 (anterior MP nº 925/2020). Nesse contexto, conclui-se que as decisões judiciais devem observar, em especial, os Princípios da Razoabilidade e da Imprevisibilidade, sempre com atenção ao efetivo dano sofrido pelo Consumidor, a fim de se evitar enriquecimento ilícito e, ao mesmo tempo, a impunidade de fornecedores eventualmente negligentes e imprudentes.
Flávia Rincon
Estagiária Acadêmica
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[1] Palavra de origem inglesa, que remete ao seguimento de mercado que fornece refeições coletivas, incluindo também itens correlatos, para companhias de aviação, restaurantes empresariais, hospitais, eventos, dentre outros.
[2] Disponível em: <https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/05/12/passagem-de-aviao-deve-subir-50.ghtml> Acesso em: 13 de Maio de 2020.
[3] Lei Federal nº 14.034/2020 – disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L14034.htm – acesso em 23/08/2020.
[4] Disponível em: <https://www.anac.gov.br/noticias/2020/regras-emergenciais-para-alteracao-e-reembolso-de-passagens-aereas> Acesso em: 14 de Maio de 2020.
[5] Disponível em: <https://tj-sp.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/18302588/apelacao-apl-2439563920108260000-sp-0243956-3920108260000/inteiro-teor-103981285> Acesso em: 15 de Maio de 2020.
[6] ACM explicita sobre esta excludente em seu Artigo 20, que versa: “Se o transportador prova que a pessoa que pede indenização, ou a pessoa da qual se origina seu direito, causou o dano ou contribuiu para ele por negligência, erro ou omissão, ficará isento, total ou parcialmente, de sua responsabilidade com respeito ao reclamante, na medida em que tal negligência, ou outra ação ou omissão indevida haja causado o dano ou contribuído para ele. Este Artigo se aplica a todas as disposições sobre responsabilidade da presente Convenção, inclusive ao número 1 do Artigo 21”. (Disponível em http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Decreto/D5910.htm.).