Com aproximadamente 30.000 km (trinta mil quilômetros) de extensão, as ferrovias mais utilizadas no país conectam o denominado Quadrilátero Ferrífero, localizado no sul de Minas Gerais, a outros polos de mineração, siderurgia, produção agrícola e industrial do Brasil, como Santos/SP, Itaqui/MA, Vitória/ES e Rio de Janeiro/RJ.[1]
Ainda que em processo de estagnização[2], é grande o número de incidentes que ocorrem na malha ferroviária, propiciando o ajuizamento de ações de reparação civil, o que, pela alta demanda, impulsiona também as mais variadas decisões judiciais, criando-se um cenário de insegurança jurídica, vez que existem julgados antagônicos sobre o mesmo tema, ante a ausência de uma uniformização jurisprudencial.
Neste sentido, importante destacar, preliminarmente, os principais conceitos que se amoldam ao assunto, em especial, o que diz respeito à responsabilidade civil, que deve ser analisada por intermédio de três elementos essenciais, sendo eles a conduta do agente (ação ou omissão), o dano ocorrido e o nexo de causalidade, nos moldes dispostos no Código Civil/02 – artigos 186, 187 e 927[3]-.
Em derivação aos elementos supracitados, observa-se que no ordenamento jurídico se ramificam dois tipos de responsabilidade, sendo i. aquela em que se faz necessária a comprovação de dolo ou culpa por parte do agente (responsabilidade subjetiva); e ii. aquela em que não se faz necessário a comprovação de dolo ou culpa por parte do agente (responsabilidade objetiva).
Ou seja, no que tange à responsabilidade civil, deve-se destacar, inicialmente, que o dever de indenizar resulta da necessária ocorrência de um dano ou prejuízo ao patrimônio de uma pessoa, seja ele físico ou imaterial, provocado por uma ação ilícita ou abusiva de direitos e da existência de um nexo de causalidade entre o fato e a lesão.
Com intuito de melhor compreendermos o nexo entre a ocorrência do dano, culpabilidade e responsabilidade dos agentes envolvidos nos acidentes ocorridos na malha ferroviária, devemos estabelecer as premissas que delimitam o conceito da responsabilidade.
Será subjetiva, reitera-se, quando imprescinde de comprovação de culpa do agente causador do dano. Para Maria Helena Diniz[4], na responsabilidade subjetiva,
“o ilícito é o fato gerador, sendo que o imputado deverá ressarcir o prejuízo, se ficar provado que houve dolo ou culpa na ação. (…) a responsabilidade civil não pode existir sem a relação de causalidade entre o dano e a ação que o provocou”.
Subtrai-se que a legislação civil adotou, como regra ordinária, a responsabilidade subjetiva, pela qual, para que haja o dever de reparar, deve ocorrer de forma indissociável a conjugação dos já mencionados três elementos.
Em contrapartida, na responsabilidade objetiva, a atividade que gerou o dano é lícita, mas causou perigo a outrem (ou violação ao seu direito), de modo que aquele que a exerce, por ter a obrigação de velar para que dela não resulte prejuízo, terá o dever ressarcitório, pelo simples implemento do nexo causal.
Nesta modalidade, não se faz necessária a comprovação de culpa do agente pelo dano ocorrido, consoante estabelecido pelo artigo 37, §6º, da CF/88[5].
Importante destacar que a aplicação da teoria da responsabilidade, em sua forma objetiva, nos termos da regra prevista na Constituição, só é possível se o caso versar sobre responsabilidade do transportador ferroviário pelo deslocamento de cargas ou de pessoas.
Com isso, a vítima deverá demonstrar pura e simplesmente o nexo de causalidade entre o dano e a ação que o produziu. Nelson Néri e Rosa Maria de Andrade Néri[6] destacam ser imprescindível o exame da causa
“…quando da apuração da responsabilidade de alguém por algo, quando da análise do dever de indenizar de um dano sofrido por outrem, ocasião em que se analisa o nexo de causalidade como critério para identificar se, por quem e a favor de quem a indenização e em que medida… É nessa seara que surge a pergunta sobre o que seria causa juridicamente relevante de algo para imputar a alguém a responsabilidade pela ocorrência de determinado fato.”
Dessa forma, é possível identificar o dano e seu autor, assim como o grau de culpabilidade de cada agente envolvido na ação ou omissão.
Havendo uma grande discrepância entre o grau do dano e da culpa relacionados a conduta ou omissão, o dever de indenizar deve ser mitigado em razão da conduta dolosa daquele que pratica o ato, e repita-se, sendo por esse liame causal possível identificar o grau de culpabilidade de cada agente envolvido na ação ou omissão. Nesse sentido:
A indenização, por danos morais, consiste na conduta, ilicitude da ação ou omissão, culpa, dano e nexo causal entre a conduta e o resultado lesivo. Na ausência de qualquer um destes requisitos inexiste o dever de indenizar. (TJMG – Apelação Cível 1.0000.18.131626-6/001, Relator(a): Des.(a) Newton Teixeira Carvalho, 13ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 31/01/2019, publicação da súmula em 01/02/2019)
Feita essa pequena digressão sobre a percepção de responsabilidade, necessário estabelecer os conceitos pertinentes à culpa, possiblitando a compreensão da relação entre a responsabilidade civil e a conduta dos agentes envolvidos nos acidentes em questão.
A culpa concorrente ocorre quando o agente e a vítima colaboram concomitantemente para o resultado lesivo, implicando em redução proporcional do quantum indenizatório.
Nesse sentido, o dever de cuidado, esperado do agente e da vítima, se delimita em face da “falta” de cuidado em razão da ação. A respeito, importante destacar que a culpa concorrente decorre de uma injusta provocação feita pela parte adversa para a ocorrência do acidente e estabelece, entre as partes litigantes, verdadeira divisão de responsabilidade, de forma automática.
Trata-se de evidente impossibilidade de se imputar apenas ao suposto causador do dano total responsabilidade pelo acidente, devendo ser considerada a concorrência de culpas ou, até mesmo, sua total isenção. O Professor Washington de Barros Monteiro[7] ensina que
“se houver concorrência de culpas, ao autor do dano e da vítima, a indenização deve ser reduzida. Posto não enunciado expressamente, esse princípio é irrecusável no direito pátrio, constituindo, entre nós, jus receptum. A jurisprudência consagra, com efeito, a solução do pagamento pela metade, no caso de culpa de ambas as partes.”
Assim, no caso dos acidentes na malha ferroviária, que não tratam de responsabilidade objetiva, a jurisprudência tem aplicado o instituto da culpa concorrente, por exemplo, quando as Concessionárias, eventualmente, deixam de observar a legislação pertinente à segurança que lastreia as margens da rodovia, concorrendo com a vítima que ultrapassa a linha férrea em local não apropriado[8].
Já a culpa exclusiva se dá quando a vítima provoca, sozinha, o resultado lesivo. Ou seja, no contexto da segurança exigida, mesmo que houvesse toda precaução por parte da Concessionária, a vítima, ainda assim, se conduz de maneira a obter aquele resultado.
Evidente que, nestes casos, não poder-se-ia responsabilizar as Concessionárias pelos resultados lesivos, o que, entretanto, não tem sido observado por parte da jurisprudência, como na introdução deste texto debatido.
Identificada a culpa exclusiva, necessário frisar que não há de ser atribuído qualquer dever de indenizar à empresa Concessionária, pois há o rompimento do nexo de causalidade para o evento danoso. Sobre o tema, ensina Sérgio Cavalieri Filho[9]:
“A culpa exclusiva da vítima – pondera Sílvio Rodrigues – é causa de exclusão do próprio nexo causal, porque o agente, aparente causador direto do dano, é mero instrumento do acidente. Assim, se “A”, num gesto tresloucado, atira-se sob as rodas do veículo dirigido por “B”, não se poderá falar em liame de causalidade entre o ato deste e o prejuízo por aquele experimentado. O veículo atropelador, a toda evidência, foi simples instrumento do acidente, erigindo-se a conduta da vítima em causa única e adequada do evento, afastando o próprio nexo causal em relação ao motorista, e não apenas a sua culpa, como querem alguns. A boa técnica recomenda falar em fato exclusivo da vítima, em lugar de culpa exclusiva. O problema, como se viu, desloca-se para o terreno do nexo causal, e não da culpa. (…) Washington de Barros Monteiro afirma que o nexo desaparece ou se interrompe quando o procedimento da vítima é a causa única do evento. No mesmo sentido Aguiar Dias, ao dizer: “Admite-se como causa de isenção de responsabilidade o que se chama de culpa exclusiva da vítima. Com isso, na realidade, se alude ao ato ou fato exclusivo da vítima, pelo qual fica eliminada a causalidade em relação ao terceiro interveniente no ato danoso.”
Vale mencionar, também, o que vem sendo chamado pela jurisprudência de culpa contra a legalidade, modalidade de classificação que se aplica quando determinada situação decorre da presunção de culpa do agente, que se dá em razão da conduta violadora de texto normativo. Como salientado por Sérgio Cavalieri Filho[10],
“(…) há culpa contra a legalidade quando o dever violado resulta de texto expresso de lei ou regulamento (…)”.
Segundo esta tese, tão somente o fato do desrespeito (ou da violação) de uma determinação regulamentar implicaria, por si, a responsabilização, sem a necessidade de demonstrar, quanto a ela, ter havido por parte do agente qualquer imprevisão, imprudência etc. Vejamos.
APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – ACIDENTE DE TRÂNSITO – TRANSPOSIÇÃO DE RODOVIA – AUSÊNCIA DE ADOÇÃO DAS CAUTELAS NECESSÁRIAS – CONDUTA ILÍCITA – EXISTÊNCIA – TEORIA DA CULPA CONTRA A LEGALIDADE – APLICAÇÃO – CULPA CONCORRENTE DA VÍTIMA – INEXISTÊNCIA – CULPA EXCLUSIVA – PRESENÇA –(…) (TJMG – Apelação Cível 1.0024.10.187080-6/001, Relator(a): Des.(a) Leite Praça , 17ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 11/05/2017, publicação da súmula em 17/05/2017)
Em atenção ao tema central deste Informativo – responsabilidade por acidentes na malha ferroviária-, o Superior Tribunal de Justiça – STJ, sob a sistemática de recursos repetitivos, julgou, em 08/08/2012, o Recurso Especial nº1.210.064/SP, de Relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão.
Tratava-se de um acidente ocorrido em linha férrea, com atropelamento e óbito, onde o ponto focal foi a discussão sobre a responsabilidade da vítima para a ocorrência do sinistro (se agiu com culpa exclusiva), e/ou, a concorrência da empresa Concessionária (culpa concorrente). Vejamos a ementa do acórdão paradigma.
RESPONSABILIDADE CIVIL. RECURSO ESPECIAL SUBMETIDO À SISTEMÁTICA PREVISTA NO ART. 543-C DO CPC. ACIDENTE FERROVIÁRIO. VÍTIMA FATAL. COMPROVADA A CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA NA INSTÂNCIA ORDINÁRIA. SÚMULA 7 DO STJ. NÃO COMPROVAÇÃO DO DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL NOS MOLDES EXIGIDOS PELO RISTJ. 1. A culpa da prestadora do serviço de transporte ferroviário configura-se no caso de atropelamento de transeunte na via férrea quando existente omissão ou negligência do dever de vedação física das faixas de domínio da ferrovia com muros e cercas bem como da sinalização e da fiscalização dessas medidas garantidoras da segurança na circulação da população. Precedentes. 2. A responsabilidade civil do Estado ou de delegatário de serviço público, no caso de conduta omissiva, só se desenhará quando presentes estiverem os elementos que caracterizam a culpa, a qual se origina, na espécie, do descumprimento do dever legal atribuído ao Poder Público de impedir a consumação do dano. 3. A exemplo de outros diplomas legais anteriores, o Regulamento dos Transportes Ferroviários (Decreto 1.832/1996) disciplinou a segurança nos serviços ferroviários (art. 1º, inciso IV), impondo às administrações ferroviárias o cumprimento de medidas de segurança e regularidade do tráfego (art. 4º, I) bem como, nos termos do ‘inciso IV do art. 54, a adoção de “medidas de natureza técnica, administrativa, de segurança e educativas destinadas a prevenir acidentes”. Outrossim, atribuiu-lhes a função de vigilância, inclusive, quando necessário, em ação harmônica com as autoridades policiais (art. 55). 4. Assim, o descumprimento das medidas de segurança impostas por lei, desde que aferido pelo Juízo de piso, ao qual compete a análise das questões fático-probatórias, caracteriza inequivocamente a culpa da concessionária de transporte ferroviário e o consequente dever de indenizar. 5. A despeito de situações fáticas variadas no tocante ao descumprimento do dever de segurança e vigilância contínua das vias férreas, a responsabilização da concessionária é uma constante, passível de ser elidida tão somente quando cabalmente comprovada a culpa exclusiva da vítima. Para os fins da sistemática prevista no art. 543-C do CPC, citam-se algumas situações: (i) existência de cercas ao longo da via, mas caracterizadas pela sua vulnerabilidade, insuscetíveis de impedir a abertura de passagens clandestinas, ainda quando existente passarela nas imediações do local do sinistro; (ii) a própria inexistência de cercadura ao longo de toda a ferrovia; (iii) a falta de vigilância constante e de manutenção da incolumidade dos muros destinados à vedação do acesso à linha férrea pelos pedestres; (iv) a ausência parcial ou total de sinalização adequada a indicar o perigo representado pelo tráfego das composições. 6. No caso sob exame, a instância ordinária, com ampla cognição fático-probatória, consignou a culpa exclusiva da vítima, a qual encontrava-se deitada nos trilhos do trem, logo após uma curva, momento em que foi avistada pelo maquinista que, em vão, tentou frear para evitar o sinistro. Insta ressaltar que a recorrente fundou seu pedido na imperícia do maquinista, que foi afastada pelo Juízo singular, e na responsabilidade objetiva da concessionária pela culpa de seu preposto. Incidência da Súmula 7 do STJ. 7. Ademais, o dissídio jurisprudencial não foi comprovado nos moldes exigidos pelo RISTJ, o que impede o conhecimento do recurso especial interposto com fundamento tão somente na alínea “c” do permissivo constitucional. 8. Recurso especial não conhecido. Acórdão submetido ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução STJ 08/2008.
Cumpre destacar que o Decreto nº 1.832, de 4 de março de 1996, aprova o Regulamento dos Transportes Ferroviários, bem como disciplina a segurança dos serviços em seu artigo 1º, inciso IV, artigo 4º, inciso I e artigo 54, inciso I.[11]
Em uma primeira análise, fica claro que as empresas responsáveis pela prestação de serviços ferroviários devem garantir a ordem e a segurança das ferrovias, seja através de cercas, muros, sinalizações e/ou passarelas. Porém, diante de tantos acidentes com vítimas, questiona-se se as medidas de segurança são, de fato, meio inviolável e confiável para que os acidentes deixem de ocorrer.
Neste sentido, o v. Acórdão paradigma analisou a conduta da Concessionária, que comprovou todas as medidas possíveis para que se atingisse a segurança da linha férrea, demonstrando a sinalização efetiva do trecho e demais itens que poderiam impedir qualquer pessoa que, sem que se tivesse vontade de ultrapassar os limites resguardados, adentrasse aos trilhos.
Ocorre que, no caso daqueles autos, a vítima atuou de maneira contraria aos cuidados e, decorrente disso, “deitou-se na linha férrea”, onde obteve da conduta o resultado morte. Explicitada, assim, a culpa exclusiva.
Entretanto, não foi esse o entendimento das instancias inferiores, responsabilizando-se a Concessionária pelo sinistro. Daí, temos que, como já dito, são diversos os casos em que os julgadores permanecem utilizando-se de premissas equivocadas para seu convencimento, responsabilizando as empresas civilmente, mesmo em casos que se observa indicios de culta exclusiva da vítima.
Há de se notar, entretanto, uma evolução epistemológica da jurisprudência, como, a exemplo, o resultado do julgamento da Apelação Cível nº70061656732/TJRS, no ano de 2015.
A discussão se deu em razão da ausência de sinalização às margens da linha férrea e, pela conduta da vítima que, no evento, estava alcoolizada, tendo por óbvio afastada sua coerência e equilíbrio.Vejamos.
APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL EM ACIDENTE DE TRÂNSITO. AÇÃO DE REPARAÇÃO C/C ALIMENTOS. ATROPELAMENTO EM FERROVIA. MORTE. CULPA CONCORRENTE. A responsabilidade da empresa concessionária de transporte ferroviário de cargas é objetiva em relação a terceiros usuários ou não-usuários do serviço de transporte, prescindindo da prova da culpa pelo evento ocorrido, segundo dispõe o art. 37, § 6º, da Constituição Federal. Prova dos autos que demonstra a inexistência de qualquer isolamento, dificultação de acesso ou mesmo placas de aviso informando dos perigos de transitar sobre a linha férrea onde ocorreu o acidente que ocasionou a morte da vítima, descuidando-se, assim, a concessionária das medidas de proteção às pessoas que transitam no local, restando caracterizada, portanto, a responsabilidade por negligência da demandada. Contudo, inviável afastar a concorrência da vítima no evento, à medida que esta estava alcoolizada, tendo, por óbvio, afetada sua lógica, coerência e equilíbrio. Desta forma, caracterizada a culpa concorrente em cinqüenta por cento entre a demandada e a vítima na produção do fato danoso. Indenização por danos morais arbitrada em cinqüenta salários mínimos, já considerada a culpa recíproca. Condenação da ré ao pagamento de alimentos somente aos filhos da vítima, à medida que não há comprovação da dependência financeira entre a autora Eliane e sua filha. POR MAIORIA, VENCIDA A RELATORA, DERAM PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO. (Apelação Cível Nº… 70061656732, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ana Lúcia Carvalho Pinto Vieira Rebout, Julgado em 24/09/2015).(TJ-RS – AC: 70061656732 RS, Relator: Ana Lúcia Carvalho Pinto Vieira Rebout, Data de Julgamento: 24/09/2015, Décima Segunda Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 30/09/2015)
No caso dos autos, foi declarada a culpa concorrente, uma vez que as condutas, tanto da Concessionária, quanto da vítima, que se encontrava alcoolizada, ao entendimento dos julgadores, progrediram de forma colaborativa para o resultado do sinistro.
Há evidente equívoco com relação a responsabilidade objetiva, pois, como mencionado, não se tratou de transporte de pessoas, mas, atropelamento. De todo modo, responsabilizou-se também a vítima pela sua conduta que concorreu para o resultado do sinistro.
Para por fim às decisões antagônicas, e uniformizar a jurisprudência, em recente julgamento (publicado em 27/05/2019), o Superior Tribunal de Justiça – STJ, nos autos dos Embargos de Divergência nº 1.461.347/PR, firmou entendimento embasado em se afastar a responsabilidade das Concessionárias quando evidenciado que nenhuma medida de segurança seria capaz de impedir a concorrência da vítima para o sinistro.
O caso tratou de um evento no qual a vítima deitou-se sobre os trilhos, sendo, então, atropelada pela locomotiva, resultando em seu óbito. No voto condutor, a Ministra Izabel Gallotti consignou que
“o entendimento no sentido de que ainda que haja omissão por parte da prestadora de serviço, sua responsabilidade civil é ilidida no caso de culpa exclusiva da vítima, como no caso em que essa se encontra deitada em cima dos trilhos, não podendo ser considerada culpa concorrente, a meu ver, como entendido no acórdão embargado. (…) interpretação de que havendo o ingresso na via férrea significa que a concessionária falhou na vigilância eliminaria qualquer possibilidade de culpa exclusiva, porque se entenderia que haveria omissão do dever de cercar ou fiscalizar o ingresso”.
É inegável, assim, que a conduta da vítima deve ser levada em conta, pois, se sua intenção não for analisada, nunca haverá culpa exclusiva, violando-se, assim, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
Esclareceu a Ministra Relatora, ainda, que
“Não é relevante, ao meu sentir, saber se se deitou conscientemente sobre os trilhos, se o fez sob o efeito de álcool ou qualquer outra substância entorpecente, se já estava morta ao ter o corpo colocado sobre os trilhos, ou se foi vítima de crime praticado por terceiro, circunstâncias essas sequer cogitadas nesses autos ou no paradigma, até porque estranhas à atividade e à possibilidade de controle da concessionária. Diante desse mesmo panorama de fato, o acórdão embargado concluiu pela caracterização da culpa concorrente da concessionária, que falhou em seu dever de “vedação física das faixas de domínio da ferrovia com muros e cercas bem como da sinalização e da fiscalização dessas medidas garantidoras da segurança na circulação da população”. O acórdão paradigma, ao contrário, corroborou o entendimento de que tal fato – estar a vítima deitada nos trilhos do trem logo após uma curva – configura culpa exclusiva a afastar a responsabilidade da ferrovia. Ressalte-se que o entendimento consagrado no paradigma, após exemplificar hipóteses de responsabilidade concorrente, foi o de que “a responsabilidade da ferrovia é elidida, em qualquer caso, pela comprovação da culpa exclusiva da vítima”.
Uma curiosidade – o Ministro Luiz Felipe Salomão, que foi Relator do acórdão paradigma (Recurso Especial nº 1.210.064/SP), também participou do julgamento dos Embargos de Divergência (nº 1.461.347/PR), votando contra seu provimento, sendo, contudo, vencido por seus pares.
Para o Ministro, houve um erro de forma, pois, em sede de Embargos de Divergência, “não se pode reinterpretar o que a Turma disse. Se a Turma disse ‘Houve culpa concorrente’, e o repetitivo diz ‘havendo culpa concorrente, tem que partilhar a responsabilidade’”.
A conclusão que se chega é que, com o recente julgamento dos Embargos de Divergência nº 1.461.347/PR, reforçando o STJ o entendimento pronunciado em sede de repetitivos (quando do julgamento do Recurso Especial nº 1.210.064/SP), a tendência da jurisprudência será, a partir de agora, pela uniformização, no sentido de se considerar, antes de se responsabilizar as Concessonárias pelos acidentes, ainda que na modalidade de culpa concorrente, a conduta da vítima.
Como bem salientado pela Ministra Isabel Gallotti, não há se falar em concorrência da Concessionária, ainda que haja omissão, quando evidenciado que uma atuação diferente sua não seria capaz de impedir a conduta da vítima que impulsionou o sinistro, ou nunca teríamos a hipótese de culpa exclusiva.
Ressalte-se a importância dos Princípios Jurídicos como o centro direcionador da aplicação do direito no ordenamento jurídico, de modo que sua utilização correta se faz imprescindível para assegurar a coerência entre a aplicação e a finalidade, garantido assim, sua utilização justa e consequentemente, decisões que respeitem os limites jurídicos, de forma embasada.
Nesse contexto, conclui-se que, além da análise da responsabilidade do agente, as decisões devem observar, em especial, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, por meio dos quais deve-se verificar o fim que se pretende alcançar e o meio utilizado juntamente com o bom senso e a justiça. É, ao menos, o que se espera.
Rodrigo Passos de Freitas
(31) 3261-8083
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[1] Fonte: Associação Nacional dos Transportes Ferroviários. www.antf.org.br/mapa-ferroviario/ acesso em 30/05/19
[2] Levantamento realizado pela Associação Nacional de Transportes Ferroviários afirma que “em 1997, quando havia menos trens circulando, eram 75,5 acidentes por milhão de trens.km. Em 2017, foram 10,368 acidentes por milhão de trens.km, o que significa uma redução de mais de 86%”. Fonte: Associação Nacional dos Transportes Ferroviários https://www.antf.org.br/releases/o-meio-ambiente-agradece/ acesso em 30/05/2019
[3] CC.Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
CC.Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
CC.Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
[4] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro. Responsabilidade Civil, Saraiva, 2018
[5] Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (…) § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
[6] NERY JR. Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado – Revista dos Tribunais. 2018
[7] Curso de Direito Civil, Ed. Saraiva, 2017
[8] Ao teor da dicção expressa do art. 945, CC, “Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano.”
[9] Programa de Responsabilidade Civil, São Paulo: Ed. Malheiros, 3ª ed.
[10] Programa de Responsabilidade Civil, São Paulo: Ed. Malheiros, 3ª ed.
[11]Art. 1º Este Regulamento disciplina: IV – a segurança nos serviços Ferroviários”
“Art. 4º As Administrações Ferroviárias ficam sujeitas à supervisão e à fiscalização do Ministério dos Transportes, na forma deste Regulamento e da legislação vigente, e deverão: I – cumprir e fazer cumprir, nos prazos determinados, as medidas de segurança e regularidade do tráfego que forem exigidas.”
“Art. 54 A Administração Ferroviária adotará as medidas de natureza técnica, administrativa, de segurança e educativa destinadas a: IV – Prevenir acidentes.