No atual cenário do Direito Processual Brasileiro, em que cada vez se almeja celeridade processual – muitas vezes em detrimento de garantias constitucionais asseguradas ao cidadão – as técnicas de gestão processual possuem cada vez mais um papel de destaque na seara jurídica. Partindo deste pressuposto, analisarei no presente trabalho aspectos práticos de referidas técnicas, em especial, a repercussão geral, com ênfase no lead case RE 827996[1], em trâmite no Supremo Tribunal Federal.
Observa-se atualmente no Brasil certa aproximação com o sistema do common law. Tal fenômeno é denominado por Gustavo de Castro Faria como “Jurisprudencialização do Direito”, se caracterizando por uma supervalorização e aplicação irracional da Jurisprudência na solução de conflitos, buscando atingir uma suposta segurança jurídica baseada em mera previsibilidade decisória.
Busca-se, por meio desta aproximação com o common law, uma tentativa de estabelecer uma previsibilidade decisória, retirando do âmbito processual garantias constitucionalmente asseguradas, rejeitando o primado da participação democrática das partes na construção do provimento jurisdicional, de modo que o Judiciário tenha que se manifestar cada vez menos acerca de questões que lhe são submetidas.
Para Gustavo de Castro Faria:
A supressão deste cenário de dialogicidade enseja limitação ao contraditório e culmina na construção de um provimento ilegítimo para o qual não contribuíram os argumentos e provas apresentados pelas partes porque simplesmente desconsiderados pelo órgão decisor e substituídos por teses repetidamente ditadas em casos semelhantes. (FARIA, 2011, p. 135)
Os que defendem a necessidade de se criar uma padronização decisória, o fazem sob o argumento de que é direito do cidadão conhecer minimamente, de forma prévia, o possível provimento jurisdicional, de modo que se pautam pelo conceito de segurança jurídica voltado para o aspecto da previsibilidade decisória, conforme abordado anteriormente.
Ocorre que, mais do que previsibilidade decisória, é preciso assegurar ao cidadão efetividade jurisdicional e participação na construção do provimento jurisdicional, de modo que parece mais relevante para o litigante ter resguardado o direito de ter seus argumentos apreciados pelo Poder Judiciário, para que possa influir democraticamente na construção da decisão. Uma decisão construída de forma conjunta e não imposta às partes tem maior possibilidade de ser cumprida voluntariamente.
Outro argumento utilizado pelos defensores da padronização decisória é aquele segundo o qual, para casos semelhantes terão que ser dadas soluções semelhantes. Tal argumento também deve ser rejeitado. Reduzir a aplicação do direito à mera subsunção de um caso concreto a outro anteriormente julgado, limitaria de sobremaneira a participação democrática no processo. Do modo que é utilizado no Brasil, o sistema de precedentes não se presta a solucionar casos semelhantes que são submetidos à análise do judiciário, mas tão somente a fortalecer a denominada jurisprudência defensiva, que tem por escopo reduzir o número de demandas submetidas à apreciação dos Tribunais.
Superadas as considerações teóricas, a partir deste momento passaremos a analisar aspectos práticos do instituto da repercussão geral nas demandas relacionadas ao sistema financeiro de habitação.
Mas o que é repercussão geral? Em linhas gerais, repercussão geral constitui requisito de admissibilidade do recurso extraordinário, sendo introduzido no ordenamento jurídico por meio da Emenda Constitucional 45/2004, que ficou conhecida como “a emenda da reforma do Judiciário”. A função deste requisito é, como dito anteriormente, reduzir o número de demandas submetidas à apreciação do Supremo Tribunal Federal, constituindo verdadeira técnica de gestão processual, não de julgamento.
Com o advento da Emenda Constitucional 45, somente os litigantes que demonstrassem transcendência e relevância da matéria discutida em sede de recurso extraordinário conseguiriam que seus argumentos fossem submetidos à apreciação do pretório excelso.
Diz-se transcendência por que impõe-se a necessidade de a questão debatida ultrapassar o âmbito do interesse das partes litigantes e relevância por exigir-se a demonstração de impacto jurídico, político, econômico ou social, ainda que estes se confundam entre si.
Partindo desta premissa, é possível presumirmos que a matéria discutida no lead case RE 827996 possuí transcendia e relevância. E de fato possuí.
A controvérsia cinge-se à existência de interesse jurídico da Caixa Econômica Federal para ingressar como parte ou terceira interessada nas ações envolvendo seguros de mútuo habitacional no âmbito do Sistema Financeiro de Habitação e, consequentemente, à competência da Justiça Federal para o processamento e o julgamento das ações dessa natureza.
A princípio, o tema parece confuso, complexo, pouco familiar e os mais desavisados devem estar se perguntando: Como isso poderia afetar minha vida de alguma forma?
Vejamos. O Sistema Financeiro de Habitação (SFH) surgiu com o objetivo de propiciar moradia às pessoas de baixa renda no período de estagnação econômica e altos índices de inflação, por meio de subsídios fornecidos pelo extinto Banco Nacional de Habitação.
Em uma primeira análise, o assunto não nos parece muito atraente, mas pode nos afetar, ainda que indiretamente.
É que os contratos de mútuo firmados com recursos do Sistema Financeiro de Habitação (SFH) possuem como caraterística a existência de pacto acessório de seguro, o qual visa securitizar o crédito utilizado na operação financeira. Em caso de ocorrência de sinistro previsto expressamente na apólice pública (também denominada apólice de ramo 66), o valor das indenizações a serem pagas são oriundos do Fundo de Compensação de Variações Salariais (FCVS).
Após diversas alterações legislativas, atualmente a gestão do FCVS foi conferida à Caixa Econômica Federal. Com isso, chegamos ao ponto crucial para compreensão de qual o impacto do julgamento do RE 827996 terá nos processos em que se discute o pagamento de indenizações atreladas à contratos de mútuo firmados no âmbito do Sistema Financeiro de Habitação.
Conforme sabemos, a competência para julgamento de demandas nas quais figura como parte empresa pública federal é da Justiça Federal, nos termos no art. 109, I, da CR/88. Nesta linha, o Superior Tribunal de Justiça foi além editou a súmula 150, segundo a qual compete à Justiça Federal decidir sobre a existência de interesse jurídico que justifique a presença, no processo, da União, suas autarquias ou empresas públicas.
Veja-se que, por se tratar de competência em razão da pessoa, e, portanto, absoluta, não é permitido aos juízos estaduais sequer avaliarem a existência de interesse jurídico da empresa pública federal. Em havendo manifestação neste sentido, deve a competência ser declinada ao juízo federal, sob pena de nulidade de todos os atos processais subsequentes.
Não obstante as considerações do último parágrafo, a jurisprudência ainda é vacilante com relação ao tema, existindo diversos posicionamos acerca de qual o juízo competente para julgamento das demandas. Neste sentido, em razão de multiplicação de processos relacionados ao tema, bem como dos possíveis impactos orçamentários ao FCVS, cuja administração é federal, o qual, restou reconhecida, nos autos do nosso lead case, a repercussão geral.
Ou seja, terá o Supremo Tribunal Federal a árdua missão decidir se compete ou não à Justiça Federal julgar as demandas relacionadas aos contratos de mútuo firmados no âmbito do SFH. Apesar de parecer uma discussão simples, muitos são os entendimentos e interpretações. E maiores ainda são os impactos, dentro os quais podemos listar a possibilidade de suspensão nacional dos processos, obrigatoriedade de intervenção da Caixa Econômica Federal em todas as demandas envolvendo seguros de mútuo habitacional no âmbito do Sistema Financeiro de Habitação e declaração de incompetência dos processos em trâmite na Justiça Estadual.
As seguradoras privadas, que assumiram tão somente a gestão operacional dos seguros, e que vem anos após amargando prejuízos significativos em razão de condenações e custas (e custos) processuais, aguardam com apreensão o julgamento do recurso. Havia grande expectativa que houvesse, liminarmente, a suspensão nacional dos processos. Todavia, em que pese a determinação contida no art. 1.035, §5º, do CPC, o Ministro Gilmar Mendes deixou de determinar o sobrestamento, por entender que a legislação processual traz uma apenas uma “recomendação” neste sentido (incluir referência da decisão, data de publicação, etc).
Desta forma, considerando que a praxe nos permite concluir que as chances de inclusão do feito em pauta de julgamento são remotas neste primeiro semestre, por ora, somente nos restar torcer para o Supremo Tribunal Federal seja, de fato, o Guardião de Constituição, salvaguarde a aplicação do art. 109, I, da Carta Magna, concluindo pela necessidade de intervenção da Caixa Econômica Federal nas demandas relacionadas à contratos de mútuo no âmbito do SFH e, portanto, pela competência da Justiça Federal.
Lucas Santos
(31) 3261-8083
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[1] RE 827996/PR, Sul América Companhia Nacional de Seguros X Leonardo Benite e outro(s), 2ª Turma, Relator: Ministro Gilmar Mendes, Supremo Tribunal Federal.