SOCIOAFETIVIDADE E MULTIPARENTALIDADE: UMA ANÁLISE CRÍTICA DO PROVIMENTO Nº 63/2017 DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – CNJ
RESUMO
O que se pretende no presente estudo é fazer uma análise crítica do Provimento 63/2017 do Conselho Nacional de Justiça -CNJ e suas implicações no direito de filiação, em especial na multiparentalidade. De acordo com o Provimento, é possível o reconhecimento voluntário da parentalidade socioafetiva extrajudicialmente, sendo controverso o reconhecimento da multiparentalidade. A questão não é pacífica, por se tratar de um procedimento administrativo perante o Cartório de Registro Civil, sem maiores formalidades, inclusive, sem a presença do Ministério Público e de um advogado.
Palavras-chaves: Multiparentalidade. Parentalidade Socioafetiva e Registro Civil.
ABSTRACT
The purpose of this study is to make a critical analysis of the Provision 63/2017 of the Conselho Nacional de Justiça – CNJ and its implications on the right to membership, especially in multiparentality. According to the Provision, it is possible the voluntary recognition of the socio-affective parenting extrajudicially, being the controversial the recognition of the multiparentality. The issue is not peaceful, because it is an administrative procedure before the Civil Registry Office, without further formalities, including without the presence of the Public Prosecutor and a lawyer.
Keywords: Multiparentality. Parenthood Affective relationships and Civil Registry.
Em uma sociedade plural, a variação acerca da personificação das famílias torna-se cada dia mais evidente. A família, diante o Estado Democrático de Direito, deixou de ter uma única fonte, e, o pluralismo familiar tornou-se princípio do ordenamento jurídico vigente. E, ao falar de pluralidade da família, deve-se afirmar que não existe mais um único modelo, como existia anteriormente, quando o casamento equivalia à família legítima.
A Constituição da República ao falar que a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado[1], refere-se a todos os núcleos familiares, de forma generalizada.
O que se pretende no presente trabalho é demonstrar que o direito deve se curvar às necessidades existentes na sociedade, buscando sempre se adaptar a elas. Pautado nesses pilares é que este artigo busca salientar o quão importante é o cuidado que se deve ter nas relações pessoais, em especial nas relações de filiação.
No estudo realizado, procurou-se demonstrar a novidade trazida pelo Provimento nº 63/2017 do Conselho Nacional de Justiça-CNJ, buscando correlacioná-lo à multiparentalidade e a socioafetividade, uma vez que tal instrumento autoriza e unifica no território nacional o reconhecimento voluntário da parentalidade socioafetiva extrajudicialmente (CNJ, 2017).
O Provimento é objeto de muitas críticas a serem abordadas, até mesmo pelo fato de isentar a essencial atuação de advogado e do Ministério Público. Ou seja, o importante amparo legal exercido pelos advogados e a fiscalização do Ministério Público passam a ser substituídos pela “desjudicialização”, deixando a cargo do registrador a análise das questões de fato e de direito.
No entanto, é dever dos aplicadores do Direito reconhecer que, diante de um tema tão importante como a parentalidade e a filiação, deve-se exigir uma análise cuidadosa de cada caso concreto, uma vez que se trata de assunto de suma importância na vida de uma pessoa, em especial quando um dos envolvidos é uma criança ou adolescente.
Salienta-se que se a “desjudicialização” pode trazer benefícios, de outro lado, também poderá acarretar danos, caso a tutela não seja efetivada, podendo causar problemas futuros aos envolvidos. O fácil acesso ao registro, sem qualquer análise e inclusive um estudo psicossocial do caso, poderá trazer celeridade e diminuição dos processos judiciais existentes, mas, também, traz consigo uma imprecisão quanto aos resultados futuros, em especial quando envolvida estiver a multiparentalidade.
Tratando-se do tema filiação, o Judiciário deve buscar promover mudanças de paradigmas e abranger qualquer espécie de grupo familiar, sem discriminação. A humanidade avança e a família contemporânea é fruto desse avanço:
É essa função paterna exercida por “um” pai que é determinante e estruturante dos sujeitos. Portanto, o pai pode ser uma série de pessoas ou personagens: o genitor, o marido da mãe, o amante oficial, o companheiro da mãe, o protetor da mulher durante a gravidez, o tio, o avô, aquele que cria a criança […], enfim, aquele que exerce uma função de pai. (PEREIRA, 2003, p. 121)
Para Maria Goreth Macedo Valadares[2], ao tratar da filiação, fica constatado a tríplice fonte jurídica da paternidade: a presumida, a biológica e a afetiva. E, portanto, o afeto deve ser visto como um fato jurídico, e não um princípio, vez que sua formação é ocasionada por comportamentos de uma convivência familiar, e não imposto:
Coexistindo vínculos parentais afetivos e biológicos mais do que apenas um direito, é uma obrigação constitucional reconhecê-los, na medida em que preserva direitos fundamentais de todos os envolvidos, sobretudo, o direito à afetividade. (DIAS, 2016, p. 405).
A afetividade é para o Direito de Família um elemento de suma importância, capaz de gerar efeitos jurídicos, a partir do momento que é externado objetivamente pelos atos de criar, educar e assistir. (VALADARES, 2016, p. 63).
A posse de estado de um filho engloba os atributos relativos ao poder familiar. Uma vez caracterizada a afetividade e desde que seja ela reconhecida juridicamente, estará apta a produzir efeitos jurídicos, ainda que ausente o vínculo biológico:
Por ser uma relação entre os indivíduos, o afeto se desenvolve e evolui como relação social. Progride socialmente. Obriga crescentemente. Vincula. Gera responsabilidades entre os sujeitos. Daí, porque o direito o protege não apenas como fato individual, mas, também como fato social. O afeto é fator de outros fatos que o direito protege. A afeição é um fato social jurígeno, que geram direitos e obrigações acerca de vários bens e valores, como alimentos, moradia, saúde, educação, etc. (BARROS, 2002, p.6)
João Baptista Villela foi pioneiro sobre a ideia da desbiologização da paternidade. Para ele, a paternidade propriamente dita não é um fato da natureza, e sim um fato cultural:
Embora a coabitação sexual, de que possa resultar gravidez, seja fonte de responsabilidade civil, a paternidade, enquanto tal, só nasce de uma decisão espontânea. Tanto no registro histórico, como no tendencial, a paternidade reside antes no serviço e no amor que na procriação. (VILLELA, 1979, p. 48).
Muito se discute sobre o afeto, uma vez que diversos aplicadores do Direito o tratam como princípio jurídico. Mas, é importante criticar esse posicionamento, pois, princípio possui caráter coercitivo e não há como impor o exercício de afeto a alguém. O fator determinante comum de qualquer núcleo familiar é o afeto (constante e espontâneo). O Estado outorga liberdade às pessoas, e, as pessoas devem procurar viver da maneira que melhor lhes convenham.
É importante ressaltar que, se o afeto for entendido de forma objetiva, não haverá problema em denominá-lo como imperativo, vez que o pai não precisa amar, e sim criar, educar e assistir, o que, futuramente, poderá ser cumulado ao afeto enquanto sentimento.
As implicações jurídicas iniciam-se a partir do momento em que o afeto se torna notório e público. Logo, ainda que inexista vínculo biológico, a afetividade por si só é capaz de gerar responsabilidade parental, conferindo status de pai e filho aos envolvidos.
O exercício fático da autoridade parental consubstancia-se em alguém desincumbir-se de praticar condutas necessárias para criar e educar filhos menores com o objetivo de edificar sua personalidade, independentemente de quaisquer vínculos consanguíneos.
Sendo assim, o pai ou mãe socioafetivos são, na verdade, verdadeiros pais funcionais, ou seja, não é o laço consanguíneo que faz surgir a relação parental, mas sim o exercício efetivo das funções parentais que os revelam para os filhos como seus referenciais paternos. (TEIXEIRA; RODRIGUES, 2010, p.181).
Desta forma, deve-se possibilitar o reconhecimento dos laços afetivos como liame para consolidar as relações jurídicas. Ao contrário, estaria legitimando a violação da liberdade, segundo um padrão único de justiça: o biológico. Para João Baptista Villela[3], o termo desbiologização da paternidade, é consagrado pela relação entre pais e filhos que não possuem vínculo consanguíneo.
E uma vez caracterizada a socioafetividade, os pais ou os filhos poderão requerer esse reconhecimento jurídico para que haja produção de efeitos jurídicos decorrentes do elo parental, garantindo segurança aos envolvidos. Destarte, “a desbiologização da paternidade tem, na posse de estado de filho, sua aplicação mais evidente”. (BOEIRA, 1999, p. 55).
Uma das decisões pesquisadas no presente trabalho fundamenta a paternidade socioafetiva de acordo com o lapso temporal:
Mais de 03 (três) anos se passaram, sabendo o autor que a sua filha era criada por outra pessoa, que assumia publicamente a condição de paternidade, e da criança cuidava como filha, sendo período mais do que suficiente para consolidar a paternidade socioafetiva. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.087.163/RJ; 3ª T; Relª Minª Nancy Andrighi; Julg. DJE 31/08/2011, grifo nosso).
Na esteira do que se está a afirmar, deve-se exigir um rigor maior por parte dos aplicadores do direito ao decidirem acerca da socioafetividade, uma vez que a paternidade socioafetiva não é criada apenas a partir do lapso temporal, e sim através de um conjunto de elementos:
DIREITO DE VISITAS. FILHA ADOLESCENTE. MANIFESTAÇÃO DE VONTADE CONTRÁRIA À REGULAMENTAÇÃO. PREVALÊNCIA DO INTERESSE DO MENOR. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. A regulamentação do direito de visitas deve atender não somente ao interesse dos pais, mas, principalmente, ao interesse e à vontade do menor de idade. Contando a filha adolescente já com dezessete anos de idade, não pode ser desprezada sua manifestação no sentido de repudiar a imposição de toleraras visitas do pai ausente desde sua tenra infância, sob pena de invasão de sua privacidade, intimidade e, ainda, agressão à sua dignidade humana. Não se mostra saudável nem benigno forçar a filha a conviver com o pai que a renegou por longos anos, visto que o afeto, o carinho, o respeito e o amor não podem ser impostos, mas devem ser conquistados. (MINAS GERAIS, TJ, Ap. Cível 1.0024.04.538.932-7/001, 4ª CC, Des. Rel. Moreira Diniz, DJE 13/09/2006., grifo nosso).
A multiparentalidade é o reconhecimento da existência da filiação socioafetiva com a filiação biológica, rompendo-se assim, o conceito binário de parentalidade, em que uma pessoa tinha apenas um pai e uma mãe. Importante ressaltar que a genética, por si só, há muito tempo deixou de ser suficiente para definir a parentalidade. Para Maria Goreth Macedo Valadares[4], nessa incessante busca por um direito mais humano, vários foram os paradigmas quebrados, e, ainda existem muitas barreiras a serem vencidas: uma delas é a quebra da biparentalidade.
Fato é que, com o reconhecimento da socioafetividade, uma dupla parentalidade se tornou possível: de um lado, o elo genético, inquestionável. De outro, a socioafetividade, que pode estar presente sem ser coincidente com o vínculo biológico. O direito não pode ignorar o surgimento de novos fatos sociais e sim se ater às mudanças advindas. Daí o reconhecimento da multiparentalidade, já que um filho pode ter dois pais e uma mãe, ou, duas mães e um pai.
A multiparentalidade não se confunde com a adoção, que implica em rompimento dos vínculos com a família biológica, já que sua ideia é exatamente o contrário: a cumulação do parentesco biológico e afetivo. O que se pretende demonstrar na multiparentalidade é a concomitância dos vínculos de fontes diversas, que são exercidos por mais de uma pessoa:
Uma vez desvinculada a função parental da ascendência biológica, sendo a paternidade e a maternidade atividades realizadas em prol do desenvolvimento dos filhos menores, a realidade social brasileira tem mostrado que essas funções podem ser exercidas ‘por mais de um pai’ ou ‘mais de uma mãe’ simultaneamente, sobretudo, no que toca à dinâmica e ao funcionamento das relações interpessoais travadas em núcleos familiares recompostas, pois é inevitável a participação do pai/mãe nas tarefas inerentes ao poder parental, pois ele convive diariamente com a criança; participa dos conflitos familiares, dos momentos de alegria e de comemoração. Também simboliza a autoridade que, geralmente, é compartilhada com o genitor biológico. Por ser integrante da família, sua opinião é relevante, pois a família é funcionalizada à promoção da dignidade de seus membros. Defendemos a multiparentalidade como alternativa de tutela jurídica para um fenômeno já existente em nossa sociedade, que é fruto, precipuamente, da liberdade de (des)constituição familiar e da consequente formação de famílias reconstruídas. A nosso sentir, a multiparentalidade garante aos filhos menores que, na prática, convivem com múltiplas figuras parentais, a tutela jurídica de todos os efeitos que emanam tanto da vinculação biológica como da socioafetiva, que, como demonstrado, em alguns casos, não são excludentes, e nem haveria razão para ser, se tal restrição exclui a tutela dos menores, presumidamente vulneráveis. (TEIXEIRA; RODRIGUES, 2010, p.89/106, grifo nosso)
Atualmente, a família é centrada no desenvolvimento pessoal de cada um dos sujeitos que a compõe, cujo fator primordial para a formação do vínculo familiar é o animus de constituir uma família, uma vez que a multiparentalidade consagra a solidariedade familiar, assim como a dignidade da pessoa. A partir dessa realidade, verifica-se a necessidade do registro civil para garantir todos os efeitos jurídicos decorrentes do vínculo multiparental:
O registro não é a única, mas é a mais fácil maneira de se provar a paternidade/maternidade, servindo de base para vários atos da vida civil, inclusive os garantidores de direitos dos menores – previdenciários, por exemplo – pois estabelece de forma incontestável por terceiros a relação paterno/materno filial. (PÓVOAS, 2012, p. 89).
E nesse novo compasso, essa relação vem sendo construída através da convivência e de relações contínuas. O direito não deve ignorar o fato de que várias imagens de genitores podem coexistir, apoiando-se e complementando-se reciprocamente, sem que necessariamente uma determinada figura pretenda desempenhar um papel exclusivo. (FERRANDO, 2011, p. 160).
No dia 21/09/2016, o Supremo Tribunal Federal-STF julgou Recurso Extraordinário (RE 898.060/SC) com repercussão geral, e, por maioria, entendeu ser cabível a multiparentalidade. De acordo com o julgamento, o Ministro Luiz Fux aduz que:
Não cabe à lei agir como o Rei Salomão, na conhecida história em que propôs dividir a criança ao meio pela impossibilidade de reconhecer a parentalidade entre ela e duas pessoas ao mesmo tempo. Da mesma forma, nos tempos atuais, descabe pretender decidir entre a filiação afetiva e a biológica quando o melhor interesse do descendente é o reconhecimento jurídico de ambos os vínculos. Do contrário, estar-se-ia transformando o ser humano em mero instrumento de aplicação dos esquadros determinados pelos legisladores. É o direito que deve servir à pessoa, não o contrário. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal. RE 898.060/SC. Rel. Min. Luiz Fux. j. DJE 21/9/2016.).
Ou seja, o STF inovou ao admitir a pluralidade de vínculos parentais, consagrando a garantia à isonomia jurídica entre as filiações socioafetiva e biológica, de acordo com o princípio da não hierarquização entre elas:
A paternidade socioafetiva declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, salvo nos casos de aferição judicial do abandono afetivo voluntário e inescusável dos filhos em relação aos pais. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal. RE 898.060/SC. Rel. Min. Luiz Fux. j. DJE 21/9/2016. Grifo nosso).
Maria Goreth Macedo Valadares destaca que a afetividade é capaz de acarretar por si só a responsabilidade parental, ainda que inexistente vínculo biológico ou mesmo registral. O que realmente importa é a posse de estado de um filho, que engloba os atributos relativos ao poder familiar, tais como criar, educar e assistir.
Com o reconhecimento da posse do estado de filho, fica ainda mais patente que não é apenas o elo genético ou o registro de nascimento que faz alguém exercer a parentalidade, daí a importância da exteriorização do afeto por meio dos atos de cuidar, assistir e educar, que pode levar à produção de efeitos jurídicos. (VALADARES, 2016, p. 70).
Por fim, insta salientar que o direito de família reflete os costumes da sociedade e a jurisprudência deve os acolher. Portanto, o direito deve dar um retorno positivo diante de novas situações, entre elas, a multiparentalidade, que deve ser vista como mais uma possibilidade de promoção da pessoa.
4 O PROVIMENTO Nº 63/2017 DO CNJ
O Provimento nº 63/2017 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ autoriza e unifica no território nacional o reconhecimento voluntário da parentalidade socioafetiva extrajudicialmente.
O referido Provimento tem por objetivo principal a instituição de modelos únicos de certidão de nascimento, casamento e de óbito a serem adotadas pelos ofícios de registro civil. Além disso, de maneira inédita, dispôs sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade socioafetiva. (CNJ, 2017).
Ou seja, tornou possível a “desjudicialização” de inúmeras situações, o que é objeto de críticas, positivas e negativas, principalmente no tocante à parentalidade socioafetiva e à multiparentalidade. De acordo com o artigo publicado por Ricardo Calderón, no site do IBDFAM, onde “especialistas avaliam Provimento que autoriza reconhecimento da socioafetividade em cartórios”, aduz-se que:
O provimento acolhe um Pedido de Providências do próprio IBDFAM, no qual o Instituto demandava a unificação nacional da possibilidade de reconhecimento da filiação socioafetiva diretamente nos cartórios de Registro Civil. Esta normativa consagra acolhimento extrajudicial do princípio da afetividade, de modo que é possível dizer que ele chega aos balcões dos cartórios. O fato de permitir que as filiações socioafetivas sejam consagradas diretamente nos ofícios registradores, sem necessidade de ação judicial, é mais um evento representativo do fenômeno da extrajudicialização que estamos vivendo no Direito brasileiro. (CALDERÓN, 2017).
Já em outro artigo publicado por Ana Cristina Arruda, em 2018, chamado “Filiação socioafetiva: MP-GO pede questionamento de provimento da Corregedoria Nacional de Justiça”, é possível descrever os apontamentos realizados sobre o afastamento do crivo jurisdicional, que foi um dos questionamentos feitos pelo Colégio de Coordenadores da Infância e da Juventude dos Tribunais de Justiça do Brasil e do Ministério Público de Goiás. O primeiro alega suposta priorização dos interesses dos adultos em detrimento aos interesses das crianças e adolescentes. Já o segundo, conforme a Assessoria de Comunicação do Ministério Público do Estado de Goiás -MPGO alega extrapolação às atribuições do Órgão aos dispositivos constitucionais, uma vez que o Provimento não se limitou a editar atos normativos que estejam dentro de sua competência, qual seja, controle administrativo, financeiro e funcional do Poder Judiciário. E, além disso, afirma que o provimento afrontou a competência para legislar sobre direito civil, que é privativa da União.
No tocante à paternidade socioafetiva, prevê o art. 10º do Provimento nº 63 de 14/11/2017:
Art. 10. O reconhecimento voluntário da paternidade ou maternidade socioafetiva de pessoa de qualquer idade será autorizado perante os oficiais de registro civil das pessoas naturais.
- 1º O reconhecimento voluntário da paternidade ou maternidade será irrevogável, somente podendo ser desconstituído pela via judicial, nas hipóteses de vício de vontade, fraude ou simulação.
- 2º Poderão requerer o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva de filho os maiores de dezoito anos de idade, independentemente do estado civil.
- 3º Não poderão reconhecer a paternidade ou maternidade socioafetiva os irmãos entre si nem os ascendentes.
- 4º O pretenso pai ou mãe será pelo menos dezesseis anos mais velho que o filho a ser reconhecido. (CNJ, 2017).
O Provimento ignorou a necessidade de intervenção do Ministério Público e da presença de advogado, em especial quando se tratar de criança e adolescente. Logo, o exercício da “desjudicialização” deve ser responsável, uma vez que se trata de atividade administrativa vinculada ao princípio da legalidade. Na decisão abaixo, é possível identificar a falta de concordância do Superior Tribunal de Justiça-STJ com a multiparentalidade, entendendo que ela não beneficiaria o menor:
A possibilidade de se estabelecer a concomitância das parentalidades sociafetiva e biológica não é uma regra, pelo contrário, a multiparentalidade é uma casuística, passível de conhecimento nas hipóteses em que as circunstâncias fáticas a justifiquem, não sendo admissível que o Poder Judiciário compactue com uma pretensão contrária aos princípios da afetividade, da solidariedade e da parentalidade responsável. […], assim, reconhecer a multiparentalidade no caso em apreço seria homenagear a utilização da criança para uma finalidade totalmente avessa ao ordenamento jurídico, sobrepondo o interesse da genitora ao interesse da menor. (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. REsp: 1674849/RS, 3ª T, Min. Rel. Marco Aurélio Bellizze, DJE 23/04/2018. Grifo nosso).
O caso em tela trata-se de investigação de paternidade c/c retificação de registro civil, onde a menor foi registrada pelo companheiro da mãe com quem tinha mais dois filhos. E, nesse caso, a mãe propôs a ação, uma vez que desejava ter um relacionamento com o pai biológico. O STJ foi claro em afirmar que o Poder Judiciário não pode compactuar com uma pretensão contrária aos princípios da afetividade, da solidariedade e da paternidade responsável. Sendo assim, é importante questionar: se o Judiciário não enxerga a multiparentalidade de forma objetiva, como admitir que a questão seja tratada administrativamente através dos Cartórios?
Logo, se ainda ocorre “dúvida” acerca da aplicação da multiparentalidade por parte do Poder Judiciário (principalmente ao se tratar de crianças e adolescentes), não faz sentido a aplicação do referido Provimento. Haveria sentido se fosse um critério objetivo, mas não é o que vemos:
A averiguação da presença de socioafetividade entre as partes é imprescindível, pois o laudo de exame genético não é apto, de forma isolada, a afastar a paternidade. […], a anulação de registro depende não apenas da ausência de vínculo biológico, mas também da ausência de vínculo familiar, cuja análise resta pendente no caso concreto, sendo ônus do autor atestar a inexistência dos laços de filiação ou eventual mácula no registro público. (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. REsp: 1664554/SP 3ª T, Min. Rel. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJE 15/02/2019).
De acordo com o julgado acima, trata-se de negatória de paternidade, onde o TJSP manteve a sentença de primeira instância, julgando-se procedente o pedido do pai, cessando o dever de sustento, com base no DNA. O STJ alegou que o laudo genético, por si só, não é apto a afastar a paternidade, uma vez que poderá ou não existir afetividade entre o pai registral e a criança. Sendo assim, deve-se averiguar a existência ou não de vínculo afetivo, com o intuito de proteger o filho.
Então, ora, pode-se dizer, mais uma vez, que não existe padronização de que o critério é objetivo. E, por este estar ausente, o provimento perde sua razão de ser.
A adoção é outro ponto importante a ser comentado, uma vez que ocorre o rompimento de todos os vínculos com a família biológica:
Formalizada a adoção, esta gera uma série de efeitos pessoais para o adotado, cessados quaisquer vínculos com a antiga família, vínculos esses que passam a ser estabelecidos com a nova família. A situação equivale, em termos gerais, ao renascimento do adotado no seio de uma outra família, apagado todo o seu passado (WELTER, 2003, p. 177).
O Provimento nº 63/2017 do CNJ é omisso sobre a adoção, no tocante à multiparentalidade, visto que não existe uma padronização do critério objetivo. Por exemplo, pode ocorrer do pai biológico, futuramente (juntamente com seu filho que foi adotado por outra família) desejar ter seu nome no campo “filiação” do registro civil. Como se deve proceder nesse caso? Visto que a adoção é tida como “castradora”, justamente por romper todos os vínculos com a família biológica. Ou seja, mais uma vez, fica demonstrado que não existe um critério objetivo da multiparentalidade e sim subjetivo, por depender da análise do Poder Judiciário perante caso a caso.
4.1 O artigo 14 do Provimento nº 63/2017 do CNJ: pró ou contra a multiparentalidade?
No passado, existia somente a possibilidade do reconhecimento da multiparentalidade através da via judicial. Com o Provimento, as partes envolvidas podem se direcionar a um cartório de registro de pessoas naturais e solicitar esse reconhecimento. O provimento nº 63/2017 do CNJ, em seu art. 11 §§ 4º e 5º, prevê que, se o filho for maior de 12 anos, o reconhecimento da paternidade socioafetiva exigirá o seu consentimento, sendo necessária, por igual, a anuência dos seus pais biológicos.
Por meio da análise de casos concretos, entende-se que estabelecer padrões, muitas vezes, acarreta a celeridade de tramitação de determinados procedimentos, mas, em contrapartida, engessam e retardam vínculos fora daqueles contemplados pela moldura extrajudicial.
Para Maria Goreth Macedo Valadares[5], a multiparentalidade é uma realidade que exige cautela dos aplicadores do Direito e de todos que estejam envolvidos em uma relação familiar, onde tal situação é vivida ou ventilada. E insta salientar que cautela não se confunde com omissão. Ou seja, é dever dos aplicadores do Direito agir de modo positivo às questões apresentadas pela sociedade, buscando sempre tutelar pela família, em especial, as crianças e adolescentes.
Em suma, percebe-se que o Conselho Nacional de Justiça busca “descarregar” as ações judiciais que abordam a multiparentalidade e a socioafetividade, uma vez que houve uma adequação dos atos extrajudiciais à recente decisão do STF sobre a repercussão geral da parentalidade socioafetiva.
Mas, conforme dito anteriormente, deverá existir cautela por parte do Direito acerca das consequências futuras que possam ocorrer, principalmente em relação à criança e ao adolescente, visto que a multiparentalidade e a socioafetividade ainda são analisadas diante o caso concreto, ou seja, ainda não existe um critério objetivo da padronização da multiparentalidade.
Dentre as inovações trazidas pelo Provimento, além da possibilidade do reconhecimento da paternidade socioafetiva, tem-se também a possibilidade do registro multiparental, afastando-se, assim, a necessidade de uma ação judicial.
O artigo 14 do Provimento dispõe:
Art. 14. O reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva somente poderá ser realizado de forma unilateral e não implicará o registro de mais de dois pais e de duas mães no campo FILIAÇÃO no assento de nascimento. (CNJ, 2017).
Flávio Tartuce, em seu artigo[6] “Anotações ao provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça – Parte II” descreve sobre a possibilidade da multiparentalidade que, para ele, foi um dos preceitos que mais gerou polêmicas nos momentos inicias de surgimento da norma administrativa. Sendo assim, formaram-se duas correntes: uma mais cética, que entendia que a norma não reconhecia a multiparentalidade pela via extrajudicial, diante do uso do termo “unilateral”; outra mais otimista, que concluía de forma contrária, na linha de efetivação extrajudicial completa da decisão do STF.
A leitura do referido artigo é, de fato, controversa. Entretanto, a Associação Nacional de Registradores de Pessoas Naturais – ARPEN em nota de esclarecimento, pela pessoa do seu presidente, Arlon Toledo Cavalheiro Júnior, foi clara ao dizer que o provimento autoriza a multiparentalidade:
O referido provimento autorizou a realização diretamente no cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais de todo o Brasil, do reconhecimento de paternidade e maternidade socioafetiva, bem como o estabelecimento da multiparentalidade, ou seja, a possibilidade de se ter mais de dois genitores no assento de nascimento. (ARPEN BRASIL, 2017, p. 1, grifo nosso).
Existem controvérsias acerca desse esclarecimento, vez que, de acordo com o pedido de providências instaurado pela Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Ceará-CE[7], acerca da correta interpretação do art. 14 do Provimento 63/2017 do CNJ, foi decidido pelo Ministro João Otávio de Noronha, em 18/07/2018 que, “o termo unilateral presente no art. 14 do Provimento 63/2017- CNJ limita o oficial de registro civil das pessoas naturais a anotar apenas pai ou mãe socioafetivos, não possibilitando o registro de ambos ao mesmo tempo”.
Portanto, entende-se que essa decisão abordou a multiparentalidade como um critério subjetivo, ou seja, a hipótese da multiparentalidade não ser cabível administrativamente, mas, somente por meio de um processo judicial.
Não podemos olvidar que a multiparentalidade e a socioafetividade são fatos jurídicos que devem possuir destaque no Direito das Famílias e sua proteção deve ser feita de forma integral, englobando todos os direitos possíveis para que prevaleça a solidariedade familiar geradora de direitos e deveres mútuos.
Além disso, é preciso uma maior conscientização da peculiaridade da família, que muitas vezes é formalizada privilegiando a letra fria da lei, ignorando, assim, os mais sublimes sentimentos inerentes aos que a compõem.
Portanto, é necessário salientar que o Estado Democrático de Direito protege os direitos fundamentais e uma vez não aceito o pluralismo familiar, ocorrerá uma negação de tais direitos. Afinal, deve-se romper o paradigma da biparentalidade, abrangendo, assim, a promoção da pessoa humana. Ao fazer isso, os legisladores e julgadores irão se despir do formalismo e se acrescerão dos valores que regem a sociedade.
Como vimos, a multiparentalidade foi reconhecida no Provimento nº 63/2017 do CNJ pela Associação Nacional de Registradores de Pessoas Naturais – ARPEN e, com isso, surgiram várias críticas, pois o reconhecimento da multiparentalidade deve ser formal e realizado pelo Poder Judiciário, através de análises dos casos concretos, para assim, posteriormente, ocorrer o registro civil, que é a garantia dos efeitos jurídicos do vínculo paterno-filial, uma vez que, somente no caso concreto os aplicadores do direito poderão verificar qual parentalidade se manifesta.
A decisão adequada é a que engloba e aceita o pluralismo familiar, reconhecendo a pessoa humana como o centro do conflito, onde a humanização das relações familiares é acolhida, sem que ocorra a hierarquização das mesmas.
Nesta seara, não basta o ato de cumprir requisitos e procedimentos no cartório para que seja reconhecido a multiparentalidade, visto que, atualmente, ainda ocorre “dúvida” por parte do Poder Judiciário acerca do deferimento ou não da multiparentalidade, principalmente ao tratar de crianças e adolescentes.
Logo, as vicissitudes de cada situação fática deverão ser norteadas no Poder Judiciário, através dos advogados, Ministério Público e estudos psicossociais, pois ainda não existe um critério objetivo acerca da multiparentalidade, o que resulta na dúvida quanto à eficácia da Resolução nº 63/2017 do CNJ.
ARPEN BRASIL. Nota de esclarecimento acerca do provimento CNJ nº 63/2017, de 06 de dezembro de 2017. IBDFAM. Disponível em: <http://ibdfam.org.br/assets/img/upload/files/2%20NOTA%20DE%20ESCLARECIMENTO%20PROVIMENTO%20CNJ%20Nº%2063%20(1).pdf>
ARRUDA, Ana Cristina. Filiação socioafetiva: MP-GO pede questionamento de provimento da Corregedoria Nacional de Justiça. Disponível em: <http://www.mpgo.mp.br/portal/noticia/filiacao-socioafetiva-mp-go-pede-questionamento-de-provimento-da-corregedoria-nacional-de-justica>
BARROS, Sérgio Resende de. A ideologia do afeto. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, v. 4, n. 14, p. 6, jul/set 2002.
BOEIRA, José Bernardo Ramos. Investigação de paternidade: posse de estado de filho. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.087.163/RJ; 3ª T; Relª Minª Nancy Andrighi; Julg. DJE 31/08/2011.
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[1]Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
[2]VALADARES, Maria Goreth Macedo. Multiparentalidade e as novas relações parentais. 1ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.
[3]VILLELA, João Baptista. Desbiologização da paternidade. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, ano 27, n. 21, p. 48, maio 1979.
[4]VALADARES, Maria Goreth Macedo. Multiparentalidade e as novas relações parentais. 1ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.
[5]VALADARES, Maria Goreth Macedo. Multiparentalidade e as novas relações parentais. 1ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.
[6]TARTUCE, Flávio. Anotações ao provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça – Parte II. 30 de maio de 2018. Migalhas.
[7]CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Pedido de Providências nº 000325-80.2019.2.00.0000. Requerente: Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Ceará-CE.